quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Mais abusos naquilo que chamam de projeto de “lei de abuso de autoridade”

Querem criminalizar gravações em qualquer ambiente; permitir que condenados por crimes contra menores de idade continuem em posse de cargo, função pública ou mandato eletivo; insistem em criminalizar a proposta de delação premiada a presos e pactuaram votar o projeto ainda com pressa: em apenas três semanas.

Analisando mais detalhes do PLS 280/2016 identifica-se outros graves absurdos no texto original do senador Renan Calheiros que estão mantidos – um deles até de forma mais grave – no substitutivo apresentado pelo atual relator o senador Roberto Requião.


Cargo, função pública e mandato para autoridades condenadas por crime contra crianças e adolescentes


O artigo 41 do projeto original e 43 do substitutivo atual, diz:

A Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, passa a vigorar acrescida do seguinte artigo 244-C:
Art. 244-C. Para os crimes previstos nesta Lei, praticados por servidores públicos com abuso de autoridade, o efeito da condenação previsto no artigo 92, inciso I, do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), somente incidirá em caso de reincidência.

Isso significa que pretendem estabelecer em lei que, mesmo abusando de sua autoridade para praticar os crimes previstos no Eca, Estatuto da Criança e do Adolescente (lei nº 8.069/1990) – como exploração, abuso, prostituição e corrupção de menores –, e mesmo depois de condenados por esses crimes, os criminosos poderão continuar em posse de cargo, função pública ou mandato eletivo.

Pois os termos “somente incidirá em caso de reincidência” deixam claro que pretendem manter o cargo daqueles que forem condenados uma primeira vez, ou seja, um “coronel”: prefeito, policial, delegado, promotor de justiça e outros, depois cumprir pena, voltariam a exercer a função.

O artigo referido do Código Penal trata de efeitos de uma condenação por qualquer crime. Ou seja, pretendem excluir os efeitos de uma primeira condenação quando o crime for definido no Eca. Como se crianças e adolescentes fossem vítimas de menor importância e como se as autoridades tivessem o direito de cometer esse tipo de abuso e exploração contra aqueles que possuem menor capacidade de defender-se.

Esse artigo deixa bem clara a pretensão de favorecer a prática de abuso de autoridade e de outros crimes.


Empecilho para fazer valer autoridade de pai ou tutor


Em seu substitutivo, o senador Requião ainda acrescentou outro artigo:

Art. 9º Decretar prisão preventiva, busca e apreensão de menor ou outra medida de privação da liberdade, em manifesta desconformidade com as hipóteses legais:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Se isso for aprovado, um pai pode enfrentar muita dificuldade, se tentar obter ordem judicial para retirar uma filha do poder de abusadores. Pois hoje há leis que se contradizem nesse tema.

Apesar de o artigo 1.634 do código civil dizer que os pais têm direito de manter os filhos em sua residência: “reclamá-los de quem ilegalmente os detenha”, a lei 11.106/2005 revogou os crimes de rapto (artigo 220) e sedução (artigo 217) de menores a partir de 14 anos.

Com essa revogação, o consentimento da vítima garante impunidade aos abusadores, gerando evidente constrangimentos a pais e tutores que decidam reclamá-los.

Isso ocorreu com base em parecer da senadora Serys Slhessarenko (veja matéria de 07/10/2015 deste blogue: http://soniardecastro.blogspot.com.br/2015/10/covarde-legalizacao-do-abuso-sexual.html).

Essa revogação foi uma primeira etapa de algumas alterações na legislação, feitas com o intuito de estabelecer liberdade sexual a adolescentes.

Essas alterações sempre foram realizadas de forma obscura. Pois, se fizessem isso de forma clara, teriam que enfrentar a grande oposição da sociedade. E, se revogassem também o artigo que trata do poder de pais e tutores, teriam que revogar as disposições que tratam das obrigações.

Pois como poderiam estabelecer em lei que pais e tutores continuariam obrigados a sustentar e orientar os menores de idade, estabelecendo de forma clara que já não teriam o poder de determinar o que poderiam fazer?

E se o Estado não tem estabelecimentos adequados para manter nem mesmo adolescentes negligenciados por seus pais, como poderiam oferecer abrigo a esses que receberam liberdade para determinar que seus pais nada podem fazer contra seu sedutor ou raptor?

Mas houve um tempo em que era fácil revogar de modo obscuro disposições contrárias de leis anteriores. Pois era possível fazê-lo sem especificar as disposições que revogavam, usando apenas os termos“revogam-se as disposições em contrário”. Mas a LCP 107/2001 mudou o artigo 9º da LCP95/1998, passando a exigir que as disposições revogadas sejam especificadas no texto da nova lei.

Com isso, devem hoje estar com dificuldade para fazer prevalecer nos tribunais as disposições da lei que estabelecem liberdade sexual aos menores de idade. Pois, ao revogar os crimes de rapto e sedução de menores, não revogaram as disposições contrárias do artigo 1.634 do código civil.

Assim fica evidente que o referido artigo 9º do substitutivo do senador Requião pode ser um modo de constranger juízes a fazer prevalecer os termos da lei que estabelecem liberdade sexual a menores, a partir de 14 anos de idade.


A pretensão de criminalizar a gravação de áudio


O artigo 42 do projeto original diz:

O artigo 10 da Lei 9.296, de 24 de julho de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação:
''Art. O. Promover interceptação telefônica, de fluxo de comunicação informática e telemática, ou escuta ambiental, sem autorização judicial:
Pena- detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

E do substitutivo do senador Requião:

O art. 10 da Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, promover escuta ambiental ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei:
Pena – reclusão, de dois a quatro anos, e multa.
Parágrafo único. Incide nas mesmas penas a autoridade judicial que determina a execução de conduta descrita no caput, com objetivo não autorizado em lei ou com abuso de poder.” (NR)

A lei 9.296 trata apenas de comunicações por meio de aparelhos: telefones e “interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática”.

Assim já é estranho que incluam naquela lei a criminalização das gravações em ambientes. Mas um artigo que criminaliza “escuta ambiental” soaria ainda mais estranho. Pois o projeto trata de abuso de autoridade e escutas ambientais podem ser realizadas por qualquer indivíduo, para só depois serem entregues às autoridades.

Assim fica claro que essa pretensão de acrescentar “escuta ambiental” nesse projeto é mais um embrulho que pode gerar muita confusão.

Pois nada consta no texto do projeto que restrinja a proibição de realizar escutas a conversas particulares nem a ambientes fechados.

Se for aprovado dessa maneira, esse artigo permitirá ao político acusar de crime aqueles que gravarem suas declarações, podendo atingir talvez até jornalistas. Pois tampouco consta algo no texto do projeto que impeça esse tipo de aplicação.

Como o projeto também pretende criminalizar o uso de prova obtida por meio ilegais (artigo 26), esse artigo pode impedir a obtenção de prova por meio de gravação de áudio.

Isso significa que gravações de pronunciamentos que representem crime poderão reverter-se contra os denunciantes e os denunciados poderão ainda posar de vítimas.


Criminalização da delação premiada


Retiraram o teor do artigo 13 do projeto original que criminalizava qualquer proposta de delação premiada: “Constranger alguém, sob ameaça de prisão, a depor sobre fatos que possam incriminá-lo”.

Mas mantiveram o teor do parágrafo único daquele artigo no inciso II do artigo 15 do substitutivo: “constrange a depor, sob ameaça de prisão, pessoa que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, deva guardar segredo ou resguardar sigilo.”

E mantiveram parte do teor do artigo 11 original no artigo 13 do substitutivo:

Art. 13. Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a:
(...)
III – produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro.
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, sem prejuízo da pena cominada à violência.

Retiraram apenas a expressão “fora dos casos de tortura”, que consta no projeto original, conforme transcrição abaixo, deixando menos evidente ou mais obscura a relação com proposta de delação premiada

Art. 11. Constranger o preso ou detento, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe ter reduzido, por qualquer meio, a capacidade de resistência, a:
(...)
III - produzir prova contra si mesmo, ou contra terceiro, fora dos casos de tortura.

Apesar de o texto disfarçar ainda seu propósito, “redução de sua capacidade de resistência” é algo que ocorre naturalmente com o oferecimento de vantagem por meio da proposta de delação premiada.

No mínimo o artigo deveria ter um parágrafo especificando que não se enquadram como tal as propostas de delação premiada realizadas com base na lei 12.850/2013.

O Senador Ricardo Ferraço pediu exclusão disso, na emenda 9. Ao justificar esse pedido, disse:

O inciso III, “produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro”, em relação aos presos e detentos, terá como efeito a inibição dos acordos de delação premiada nestas circunstâncias, pois sempre se poderá alegar que foram celebrados em razão “da redução de sua capacidade de resistência” em razão da privação da liberdade.

Mas o senador Requião rejeitou essa emenda, afirmando em seu parecer:

Rejeitamos as Emendas nº 09 e 10-PLEN, porque as condutas que pretendem suprimir configuram evidentes abuso de autoridade, não se podendo confundi-las com crime de hermenêutica, aliás já ressalvado nos termos do parágrafo único do art 1º do Substitutivo.”

Vê-se que ele não negou que o objetivo é punir promotores ou juízes que façam proposta de delação premiada a réus presos. Tampouco negou que o objetivo é também anular processos nos quais sejam incluídas provas obtidas a partir desse tipo de delação que está prevista em lei.


Pretensão de dar a criminosos oportunidade para destruir prova, constranger testemunhas e preparar-se para interrogatório


O substitutivo apresentado pelo senador Requião introduziu a exigência do ex-presidente Lula, acatando teor de emenda apresentada pelo senador Aloysio Nunes Ferreira, pretende criminalizar a “condução coercitiva”, nos seguintes termos:

Art. 10. Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo.
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Na emenda 10 antes referida, o senador Ricardo Ferraço pediu também a retirada desse artigo. Conforme o teor de sua recusa já transcrito, o senador Requião disse: “configuram evidentes abuso de autoridade”.

Mas o artigo 312 do código de processo penal prevê prisão preventiva, como segue:

A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. 

Se um juiz pode decretar prisão preventiva, por que “a condução coercitiva de testemunha ou investigado” seria abuso de autoridade? Está claro que é apenas uma forma leve de prisão preventiva, imprescindível em certo momento de uma investigação. Sobretudo envolvendo pessoa tão influente, com tanto poder de pressão sobre funcionários e autoridades, como um ex-presidente e poderoso sindicalista.


Criminalização de prova extraída de qualquer comunicação e documento de advogado


Retiraram o teor do artigo 28, mas incluíram seu teor no artigo 44, no qual pretendem criminalizar também outros atos relativos à atividade de advogados.

Assim os criminosos poderão debochar do povo e da Justiça, falando até por telefone sobre seus crimes com seus advogados, sem que essas conversas possam ser usadas como prova em processo.

Pior ainda, o uso desse tipo de prova poderia até permitir a anulação de um processo, depois de todo o trabalho realizado e gastos com investigação e processo judicial.


O risco de empurrarem tudo isso goela abaixo persiste


Pela ata da sessão do Senado de 14/12, vê-se que houve um acordo para que esse projeto fique no máximo três semanas na Comissão de Constituição e Justiça do Senado e seja logo depois levado para votação. Precisamos divulgar e ficar atentos.